Tu não o sabes, mas eu observo-te todos os dias. Sei quando estás mal, sei quando o dia te parece ter um lampejo de felicidade que flutua no ar. Quando o rímel está firmemente traçado em torno dos teus olhos é porque pensavas nele enquanto traçavas o risco a negro, sem olhares para o espelho (há quanto tempo não te olhas ao espelho?).
O anel prateado que usas no dedo aperta-te a alma, as tuas mãos tremem ao tocar-lhe mas teu olhar nada mostra, nada deixa adivinhar.
Serei eu a única a notar como as tuas mãos se crispam quando ele te abraça, como te retrais tão involuntariamente quando ele te beija? A única a notar como os nós dos teus dedos ficam brancos e, mais uma vez, o teu olhar vazio?
O teu sorriso verdadeiro faz com que ligeiras covas apareçam junto aos cantos da tua boca, faz com que os olhos brilhem e traz cor à tua face pálida, aos teus lábios excepcionalmente claros. Será que ele alguma vez viu esse teu sorriso? Talvez tenha reparado em ti antes de tudo ter acontecido, antes te de perderes de ti.
Quem sabe por onde pairará a tua alma despedaçada, ou quão grande será o bloco de gelo em que ela se converteu.
Não imaginavas o que te poderia acontecer – ou imaginavas, mas preferiste arriscar? Entraste no jogo como tantos outros, e como tantos outros descobriste as duras consequências das tuas escolhas. Será que ainda te recordas de como eras? Antes do teu sangue, tão puro, ser contaminado por ilusões, com sonhos por cumprir. Antes de selvaticamente te destruírem, física e psicologicamente.
Sei que pensas naquele dia como sendo o dia da tua morte. O dia em que decidiste morrer para o mundo. O último dia em que choraste por algo, ou por alguém, por ti. O último dia em que sentiste pena de ti.
Talvez algum dia acordes desse teu pesadelo, te libertes do fantasma a que em surdina todos chamam de toxicodependência. Talvez finalmente chores por ti, pelo feto que foi arrancado de dentro de um corpo já tão só, pela vida que te foi roubada – precisamente por quem julgavas amar.
E talvez um dia olhes em volta e me vejas a mim, talvez me sorrias de novo – E mais uma vez, apertarei as tuas mãos magras (tão magras!), sem serem necessárias palavras de qualquer tipo. Sim, nesse dia guardarei as palavras que inutilmente tentam expressar o que sinto por ti, bem fundo, no meu olhar feliz.
Nesse dia, arrancaremos juntas o anel de prata do teu dedo e voltaremos a colocar o de corda, igual ao que tenho no meu. Nesse dia, hás-de encontrar-te de novo – Guardada, a sete chaves, dentro de mim.
Filmes de 2010 (III) - Shutter Island
Há 14 anos
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