quarta-feira, 30 de novembro de 2005

O Fantasma

Não sei onde estou. O silêncio oprime-me, prende-me, fixa as suas garras em mim. Eu corro, eu salto, eu caio, procuro uma mão que não vem, um pedaço de papel que rasguei em pedaços, enconsto-me a uma parede nua. Sinto o cachecol que me envolve o pescoço, suave como seda, envolve-me todo um perfume. Selvaticamente rasgo-me sem medo. Com a cera de uma vela que espalha a sua luz ténebre pelo meu corpo, queimo-me. A cera enfeita agora a minha mão encarquilhada, os meus dedos finos tremem, lágrimas soltam-se de mim. Aos poucos, a luz esvai-se no vazio.Também ela me deixa, enregelada. E eu não vejo, não cheiro, não sinto. Nada de nada. Pergunto-me se estarei mesmo aqui ou será tudo mais um sonho de mau,
beijo um fantasma que não me deixa tocar-lhe. Ele liga-me a mão com finas tiras de ternura, e pacientemente tenta aquecer-me com o frio que emana de si. Também ele se encontra aqui, prisioneiro, mas sem o saber. Não sabe que existe melhor e deixa-se ficar. Oiço-o tactear o chão, arrastar por ele o cachecol que larguei, afaga-o tão delicadamente, cheira o perfume tão seu conhecido, sente uma textura tão desejada, senta-se, deita-se no chão de vidro, adormece. Encosto-me a ele. Ele deixa-me enconstar a ele. Os meus olhos habituaram-se ao escuro e vejo-o de outra forma. Tão fraco e pequeno por baixo de toda a sua omnipotência ilusória. Tão criança. Pego-lhe, embalo-o no meu colo, beijo-lhe a fronte, despindo-me cubro-o com vestes que já não me fazem falta - E tremendo de frio, enrolo-me em volta do seu corpo franzino e sinto a vida a esvair-se de mim.
Uma fresta que se abre no tecto.
A luz repentina fere-me os olhos, tiram-no de mim. Silenciosa dor, doce abandono. Resta-me o teu corpo majestoso, intactável,
puxas-me sonolento para ti e adormeço enfim, um sorriso tão cruel no rosto inocente.

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Fala do Velho do Restelo ao Astronauta

"Aqui na terra a fome continua
A miséria e o luto
A miséria e o luto e outra vez a fome
Acendemos cigarros em fogos de napalm
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejos
De mais alto que nós, de melhor e mais puro
No jornal soletramos de olhos tensos
Maravilhas de espaço e de vertigem.
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede onde não chove.
Mas a terra, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalm são brinquedos)
Onde come brincando só a fome
Só a fome, astronauta, só a fome." José Saramago

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Desculpa-me!

Acredito firmemente ter decorado todos os traços desse teu rosto tão comum, enquanto me tratavas como a um espelho, como se estivesses ainda a recitar o que me irias dizer quando me encontrasses. Enquanto ganhavas a coragem para me olhares nos olhos e dizeres "amo-te"
Essas palavras rasgaram-me por dentro, não as devias ter dito. Pedi-te que não dissesses. Mas disseste. Imóvel, fitando-me com olhar de fogo, esperaste
por mim. Esperaste enquanto eu olhava para o vazio, enquanto tentava definir o que sinto por ti. Ainda agora não sei.
Sei que não é amor.
Será que sabes o que é o amor? Eu não sei, mas sei que não é
(não pode ser)
o que sinto por ti. Não pode ser o que sentes por mim. Ou será que pode? Será que podemos amar quem conhecemos uma noite, com quem não partilhámos tanto quanto isso, alguém que não conhecemos? Podemos amar o desconhecido? Será que se te tivesse conhecido uns meses mais tarde,
ou mais cedo,
eu te poderia ter amado a ti também? Porque será que gostei tanto de estar contigo numa noite e na outra só queria fugir de ti?(Por muito que tenha negado esses dois sentimentos opostos, mesmo a mim) Não sei. O que sei nesta história? Quase nada,
sei que não te amo.
E isso parte-te o coração. Uma
e outra vez.
Quantas forem precisas até.. Até o quê, quem, como, quando? Até quando te vais torturar, quantas vezes vou ter de te dizer
que não te amo,
quem me dera a mim amar a sério alguém no tempo real, quem me dera não dar por mim a amar apenas recordações. Quem me dera
amar-te a ti.
Mas o que queres que te faça? Não escolho isso, não sei se tenho a capacidade de amar alguém que me ame a mim, e se eu te disser que para mim isso me afasta, que reprime, me faz repulsa, ou então não, não é exactamente repulsa, mas... Não me digas que me amas,
qualquer dia calo-te com um beijo e arrependo-me para sempre, porque um beijo para mim já não é nada, para ti pode ser tanto e eu já não sei o que é certo. E eu tenho medo de te magoar - Mas tu dizes que não, pisa-me, não me magoas, a sério. Pisa-me com mais força. Isso.
Faz com que essa dor anule a dor que sinto cá dentro, mata-me... Mata-me de prazer, porque não consigo sentir mais nada quando estou contigo,
se vou morrer ao menos que sejas tu, ao menos que seja de amor.
Não durmo, não como....
- Mas eu não te alimento, não te mantenho acordado, não te canto para que adormeças descansado, para que sonhes comigo - Talvez o melhor seja não dormires, quem sabe o que essa mente turtuosa irá inventar, talvez eu e tu num cenário ilusionório mas ao mesmo tempo tão real, acordas e
eu não estou contigo. Nunca estou contigo e tu perguntas-te porquê.
E olhas para o telemóvel esperando pelas mensagens que eu nunca vou mandar, muito simplesmente porque eu sou assim
mas tu não me conheces, tu não me conheces.
Sabes que não, mas mesmo assim tentas adivinhar quem sou. Pensas que sou perfeita, mas as imperfeições comem-me viva,
cada vez descubro mais, mal se dislumbra alguma perfeição no meio de tantos buracos em mim. O branco foi sendo substituído pelo negro e persegue-me, esventra-me a alma tão fraca
e tu não vês nada, iluminado por essa aura estranha que me vais revelando, encontro após encontro. Gosto de ti, fazes-me rir com vontade, fazes-me querer estar onde estou quando estou contigo,
mas isso não é amor.
Disse-te de novo e di-lo-ei quantas vezes forem precisas,
não é amor.
Não insistas nesse teu martírio tão fervorosamente sentido, cada parcela dele, não vale a pena. Sem querer fazer-me passar por algo que não sou - Talvez algumas pessoas valessem a pena, mas não eu. Porque vais desperdiçar tanto comigo,
eu que nunca te hei-de amar,
a não ser um dia quando fores uma memória difusa de alguém que eu poderia ter amado. Ou talvez um dia me convença que te amei e que tu nunca me amaste a mim. Talvez nunca mais me lembre de ti, talvez esta seja uma oportunidade que estou a perder, mais uma na minha vida, deixando escapar tudo por entre os dedos, talvez as coisas fiquem para sempre como estão, e eu serei sempre aquilo que nunca tiveste, nunca poderás ter. Aquela fantasia que utilizas a teu bel-prazer, sempre presente, sempre no algo estranho background da tua vida. Aos poucos ficando mais utópica até não restar nada do pouco de mim que lá está, agora. Saí para o frio escuro da noite, saí
para encontrar o gelo que me envolveu, a minha respiração solidificava à minha frente, se ficasse muito mais tempo o resto do meu coração gelaria ainda mais. Um grande bloco de gelo misturado com ferro, pedra, mármore, gesso... Qualquer coisa que o torne inquebrável,
mesmo que o gelo derreta um dia o resto manter-se-á. Indestrutível, um dia rebentará pelo meu peito, espero que não demore tanto quanto isso, aproximas-te de mim, abraças-me incontrolávelmente,
eu estática,
eu boneco de madeira articulado,
cortaram-me as pernas e os braços e tu carregas-me rua fora. Só me quero esquecer que existo, só quero esquecer que existe alguém no mundo que me ama e não estou tão só como gostaria de estar - sem magoar ninguém,
agora sou responsável por ti porque te cativei.
Mas depois és tu que me levas, sou eu que me encontro a apoiar-me em ti. Porque terá perdido o beijo tanto sentido? Porque será que a simples beleza de dois lábios unidos, corpos apertados, mãos brincando alegremente ora juntas ora separadas, tudo isso é tão banal, tão cliché, tão fora de moda até, porque será que parece já tão falso,
porque será que apetece tanto mesmo assim e me beijaste como se tudo dependesse disso?
Não queria,
não desejava esse beijo que me deste,
que não te dei de volta. Algo me dizia para te apertar, e algo me dizia para te afastar, para te olhar com frieza, para desejar repentinamente ir para casa. Não sei o que fiz.
Sei que não te amo.
Não sei o que é o amor, não sei quem sou, o que faço, não sei quem és tu e o que sentes por mim,
Desculpa-me!,
mas sei que não te amo.

sábado, 5 de novembro de 2005

O que sou eu?

Serei o que como? O que visto? O que beijo, quem beijo, como beijo? Serei linhas lançadas ao calhas por uma página em branco, tintas mescladas em tons vivos que caíram por acaso numa folha branca, que flutuam por céus cinzentos? Serei doce, forte, amarga como fel, suave como seda? Serei braços nos teus ombros, as tuas mãos na minha cintura? Talvez selvagem como a gata que dorme no meu colo... Serei a faísca com que aqueço uma lareira fria, serei riso numa tarde de Verão, água num piscina vazia, sussurro durante a noite ao tentar dormir, gemido tão dócil? serei o olhar no olhar de quem me encontro, o sorriso reflectido em mim? Serei cheiro, odor, perfume? Será que sou o que faço ou o que farei um dia, será que um dia farei de facto alguma coisa? Serei o que leio, serei o conjunto do que vivi ou do que ainda me falta viver? Serei pulsos finos, troncos nús, pernas entrelaçadas, serei engenho inútil sem função em particular, serei dócil, serei eu tão precisa, ou serei eu tão dependente de ti? Serei sombra, luz de que fujo, lábios que deslizaram sem querer pela tua face? Serei eu tanto, serei eu tão pouco, serei eu alguém dentro de alguém, ou sozinha sem saber para onde hei-de ir? Serei apenas os restos. o produto de tudo quanto amei, os retalhos de mim que me foram arrancados aos poucos ou serei apenas o que restou depois de tudo isso? Serei silenciosa dor, sofrido desespero em mim? Será que sou tudo, será que não sou nada, será que sou uma coisa qualquer...

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

A Noite

O sol põe-se. A lua reaparece, reafirma o seu intenso reinado sobre todas as coisas. Pequenas crianças entram em casa, animais são recolhidos, janelas sonoramente fechadas.
Um homem solitário, derrotado, entra num bar quase vazio, um comerciante recolhe as frutas que não conseguiu vender.
Um casal despede-se num parque, sem se dar conta da inveja nos olhos dos idosos que por eles passam – Saudade, carinho, ternura que a brisa do tempo levou....
Uma agulha enterra-se num braço magro, um elástico é debilmente apertado à sua volta – e, mesmo sem o saber, é apertado também o seu coração, o seu já tão ínfimo pedaço de felicidade.
Uma mulher chora, numa escada à frente de todos, devido a um amor que não conseguiu perdoar – e do outro lado da soleira da porta soluça um homem, escondido do mundo, graças a erros que não conseguiu evitar cometer.
No alto de um prédio, uma rapariga reflecte sobre a decisão que não se atreve a realizar (Produto de amizades, paixões, vidas desiludidas - Talvez sonhos altos demais...). Na cave rejubila uma face feliz, simplesmente pelo facto de ter encontrado um lugar seco para passar a noite.
Uma face infantil olha para o céu, esperando o tempo que fôr preciso por uma estrela cadente – esperança ténue, ainda que infundada, brilhando num pequeno espaço da crueldade do mundo – ao mesmo tempo que um homem febril luta por uma vida que lhe foi roubada, sem aviso prévio, pela própria ambição e egoísmo desmesurado, duro como pedra. A saudade e a tristeza arrebatam-lhe o coração, e a sua alma... Quem saberá o que lhe aconteceu?
Duas mãos pousam um ramo de flores dentro de um vaso, adorno simples de uma campa já gasta. Dois pequenos pés descalços pisam ao de leve o solo de pedra de uma igreja – Procura contínua de fé, de apoio, de vida.
Um cão, esquelético, arrasta pela rua a trela rota, desgastada pelas humilhações que sofreu e mesmo assim procura o dono que tão voluntariamente o abandonou. Um soldado pousa ao de leve a sua arma no chão, pega-lhe de novo e sabe que nunca vai poder descansar... Que é diferente de todos os outros, que para si não existe qualquer diferença entre o dia ou a noite, para ele nada disso tem razão de existir. Lamenta tudo o que errou, espera sem cessar um milagre que traga finalmente a paz ao mundo.. e continua a lutar.
Noutro canto do mundo, uma mãe ofegante faz nascer uma criança. Corpo, pálido, sem alegria, sem vida. Mais uma luz que se apaga, mais uma esperança perdida..
Uma presença tudo isto observa, sem conseguir evitar o pensamento que lhe ocorre «Tolos humanos. Cada um pensando que o seu problema é o maior de todos. Como explicar-lhes que há coisas que acontecem, que nada podem fazer para as impedir ou alterar, mas nem sempre são tão más como sempre parecem ser (Que apesar daquela pessoa não voltar, isso não significa que não possas ser feliz..).
Como explicar que cada flor que nasce, cada raiz espreitando ao de leve por uma fresta no chão significa algo inimaginavelmente belo, que a vida é tão incrivelmente curta que pequenos erros são insignificantes.
Explicar que desistir de tudo não é solução, que o arrependimento devia ser substituído pelo pensamento antes do acto, que a ternura ainda será a salvação da humanidade e que a guerra sempre foi e sempre será a companheira fiel da morte que rodeia corações vagabundos, perdidos no vazio.
E como fazê-los compreender que, lá por o sol desaparecer cada vez que eu me ergo para tão docemente abraçar o mundo que é meu apenas por um momento, e por não nos vermos sem ser por breves sonhos fugazes, isso não significa que exista menos amor...» 12.12.04