quarta-feira, 31 de maio de 2006

Poetisa do Dia - Sophia de Mello Breyner Andersen

Fotografia por ABrito, «Mãe natureza»

«Biografia»
Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto
contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no
vento.

"No Tempo Dividido e Mar Novo",
1985: 82

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Elogio ao amor, por Miguel Esteves Cardoso

Fotografia por Nokas, «running heart»
"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro.

Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".

Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.

Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

quarta-feira, 24 de maio de 2006

A comer chocolates

Pintado a Pastel de óleo, dia 7 de Março de 2006

“Quantas vezes vais olhar p’ra trás? Estás preso a um passado que pesou... Quantas vezes vais ser tu capaz de fazer sair que por engano entrou? Abre a tua porta, não tenhas medo, tens o mundo inteiro à espera p’ra entrar...”

Quem diria que esta música acabaria por significar tanto? Quem diria, quando ma "cantaste" ao ouvido, que irias ser tu a entrar por engano, que te tornarias algo extremamente pesado e doloroso num passado que me prende de uma maneira tão mortífera. (Incrivelmente)Ainda à espera que o medo se vá embora... À espera de quem não chega, à espera de quem já não vem...

Guardo de ti os momentos mais românticos e as palavras mais doces da minha vida. Guardo bem dentro aqueles olhares que me dirigias, a cada momento, guardo a tua mão na minha sempre que podias (e mesmo quando não podias).
Guardo sim as mensagens e as imagens que me mandaste, sei que não devia guardar. Já me disseram, já me disse eu nos momentos mais lúcidos. Mas sei que nunca conseguiria ficar também sem isso.
Guardo a ideia ou a ilusão de que nunca deixaste de gostar de mim.
Guardo de uma maneira quase masoquista as tuas frases que sempre soube serem surrealmente prometedoras “enquanto tiveres um lugar para mim no teu coração”e “hoje pedi um desejo a uma estrela”...
Guardo este desenho na parede do meu quarto, este que pintei, desenhei, sempre a pensar em ti, o telemóvel ao meu lado enquanto me ias enviando mensagens, o alento que me trouxe a tua voz, a alegria extrema, olho para ele e quase sinto de novo a alegria que me ofereceste, que eu não acreditava poder sentir. Quase. Este desenho que me grita amor e paixão, alegria, loucura desmedida. Grita-me tudo isso e eu não quero ouvir (E dói demais ouvir).
Guardo já de maneira muito indistinta a tua voz carinhosa, ao lado a tua voz aborrecida, ao colo a tua voz envergonhada...
Não perdôo o quanto sofri por ti. Não me perdôo por ter acreditado em tudo o que dizias (não tudo, claro. Mas sempre achei que em relação ao que realmente importava, não havia razão para me mentires). O meu erro? Não sei qual terá sido. No passado sim, cometi bastantes, e só se esses voltaram para me assombrar. Mas fui então condenada por um erro pelo qual já paguei? Com o qual já aprendi (Bem mais do que gostaria)? - E que, verdade seja dita, não teve rigorosamente nada a ver contigo - Onde está a justiça? E o teu erro? Qual terá sido?
Tudo isto são perdões e desculpas que não poderão nunca ser concedidos, os erros não foram meus, não foram teus. (Será que se podem chamar de erros, de todo? Foram... Situações que ocorreram). Não querendo com tudo isto dizer... Que tudo o que fizeste não te tornou num ser humano desprezível... Mas o facto é que também eu fiz coisas de que não me orgulho. Simplesmente, não contigo. Nunca contigo. Felizmente, não me fizeste arrepender de nada – Mesmo que, de uma forma ou de outra, tenhas tentado.
Mudaste a minha vida de formas que só eu sei – E tento esquecer. Um dia serás recordação difusa, relembrar-te-ei apenas através das lembranças tácteis que me restarão... Amei-te (amo-te) como nunca amei ninguém, sem razões nenhumas. Sem pensar. Sem motivos. Sem querer? Talvez não. Talvez quisesse desesperadamente sentir algo por alguém, e apareceste tu. Talvez. E eu sem imaginar que sentiria algo tão forte... Que isso que senti existia sequer.
Mais que tudo, guardo de ti esse sentir. Pelo menos tento guardar, com todas as minhas forças, mas ao invés o que fica é um seu pálido reflexo.
Lembro-me como me senti. Lembro-me, já não sei.
Guardo de ti... Em suma, tudo o que posso.
Guardo de ti os mais pequenos detalhes que se me escapam entre as nesgas da memória, aperto-os de encontro a mim até mesmo assim se desvanecerem também, guardo tudo isso junto e tento fechar a sete, a mil, a um milhão de chaves, escondo-as em sítios completamente improváveis, tento jogar comigo mesma... Mas acabo sempre por saber onde estão, e logo as colecciono, para quase sem forças rever o pouco que me deixaste.
Guardo de ti (não propositadamente, claro) as facturas de todo o chocolate que comprei para saciar sabia lá eu o quê, guardo o momento em que me apercebi que mesmo apesar de tudo isso as pessoas se dirigiam a mim e notavam que estava a emagrecer. Provocaste mudanças tão profundas em mim que elas afectaram a minha forma física, consumiste-me de uma maneira indescritível – Será que imaginas sequer isto? E de repente nem isso é importante...
Guardo de ti a fotografia francamente ridícula do boneco de neve que baptizaste como nosso, juntamente com aquela em que não se nota que és tu, e a outra em que talvez parecesses tu num dia estranho se eu apenas me lembrasse como tu és...
Sim, guardo a confusão extrema, que se enrodilhou à volta da tua imagem, essa permanece, essa estará sempre ali. Um ponto de interrogação gigante a que ainda não consigo ficar indiferente, que me perturba, que me intriga.
Guardo a noção extremamente lúcida de que o melhor será esquecer-te definitivamente e que tudo o que me trarás daqui para a frente não será nada para além de dor e sofrimento – que nem o teu sorriso conseguirá apaziguar, nem sequer por momentos. Guardo a ideia de que até mesmo esse “guardar” será muito doloroso. Que não o devia fazer.
Guardo de ti uma impressão esquisita no fundo do estômago cada vez que oiço «aquela» música (e, descobri há pouco tempo, «aquela» voz). Um «baque» que me irrompe pelo peito e não me deixa respirar normalmente, mas que ninguém nota, ninguém vê, ninguém sente. Só eu.
Assim, guardo-te como me dá mais jeito enfim, guardo-te muito provavelmente não como és na realidade mas como foste para mim. Um teu “Eu” especial que só me mostraste a mim – Real ou não. E se foste real apenas por momentos... Ao menos ofereceste-os a mim, e guardo-te assim - como te ofereceste. Sem tirar nem pôr. Relembrando-te sempre possessivo e ciumento. Complexo demais. Romântico demais.
Guardo de ti a convicção que me amaste também, e sei que já o disse, mas di-lo-ei, uma e outra vez, provavelmente por toda a minha vida, até que um dia tenhas a coragem para me contradizer.
Guardo tudo isto de ti, e descubro que não chega.
Não chega ter de olhar para trás ou para dentro ou para outro local qualquer quando quero sentir-me mais motivada, mais feliz, menos descontente com a vida. Não quero guardar os episódios que me fizeram tão bem, quero esses momentos no meu presente, queria-te a ti como me lembro que eras e noto a impossibilidade desse acontecimento porque tu, como eu te recordo, não existes, não és. Talvez nunca tenhas sido, e certamente nunca mais existirás, mesmo que eu tenha estado certa este tempo todo. Nunca mais serás, para além da memória que eu insisto em reter, mais do que um hipócrita, um cobarde, imaturo, superficial.
Por isso mesmo, abraço a recordação que tenho de ti, para não sentir uma dor tão forte como se me apercebesse que o meu amor não existe. Que foi uma ilusão. Na minha mente estás de alguma forma vivo, real, aqui, tão perto de mim, e amas-me. E eu acredito que, de alguma forma, nunca vou deixar de te amar. Tu, que nunca mais existirás, o vazio à minha volta, dentro de mim preenches-me, tu. Eternamente, tu.

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Aqui, tão perto de mim

Fotografia por Catarina Cruz, «Warmness on the Soul»
Passas por mim e não me olhas. Espero que não me tenhas reconhecido. Estou tão diferente. Fiz tanto por estar tão diferente. Tanto por esquecer o que fui, quem fui, como fui - contigo. Tento resisitir ao impulso de te seguir, mas é um impulso tão forte. Muito mais forte do que eu alguma vez fui capaz de ser. Vou assim caminhando, uns passos atrás de ti, cada vez que páras eu recuo um pouco. Por favor, não olhes. Não quero que me olhes. Não posso sequer imaginar o que dirias, o que farias tu se soubesses que estou aqui. Perto de ti.
Revejo na minha mente todos os cenários que partilhei contigo, agora mais nítidos devido à visão renovada da tua face. Sorrio. Um sorriso triste, de quem se apercebe que afinal não terá estancado a hemorragia tão bem quanto devia.De quem se achava tão forte. Preparada. Preparada para te enfrentar outra vez. Mas não estou. Não sei se um dia estarei.
Alcanço-te por fim. Estendo o braço, a mão, tão perto, tão próxima, mas não te toco, não consigo. Se me afastar agora ainda vou a tempo, nunca saberás que estive aqui. Será que vou eu também a tempo de me perdoar a mim se o fizer?
Imagino que te viras, o teu olhar cruza-se com o meu. Sorris automaticamente, esse teu sorriso. Li tanto nesse teu sorriso. Desejo, amor, desculpas. Desculpa-me. O olhar que desviaste e tentaste não fixar em mim. Desculpa-me tanto. Li um mundo no teu olhar que durou um instante apenas. Lembro-me de como tentaste em vão esbater o sorriso para os cantos da boca, e só me apetece abraçar-te de encontro a mim outra vez. Só quero recordar-me de ti.
Silenciosa, inspiro. Já não tens o mesmo cheiro. Não saberias o que dizer, eu ficaria calada, o meu sorriso lutando também ele por se libertar, desvendar-se em mil gargalhadas de pura felicidade, apenas por te ver aqui. Aqui, tão perto de mim. Não te conseguiria ouvir, para te falar teria de me aproximar ainda mais de ti. Não consigo, sei que não estou pronta, tenho medo, medo de mais uma vez descolar um do outro os pedaços de mim, ainda não estão totalmente encaixados, ainda estão tão frágeis.
Impotente, deixo cair os braços. Dou meia volta, afasto-me.