sábado, 28 de janeiro de 2006

Inconstâncias

Fotografia tirada por mim... Em Fevereiro de 2005
Corre. Esconde-te de mim. Nunca vais conseguir que eu te esqueça. Segue os meus passos, caminha, ajoelha-te no chão que eu piso. Nunca serás meu. Nunca serei tua. Não te quero. As tuas unhas já com tanta sujidade de esgravatares a terra, à procura de algo que te esconda, de algo que dê algum sentido a esta vida arranham-me a pele. Puxa-me os cabelos, grita-me, olha-me enquanto permaneço impávida e serena retribuindo-te o olhar de ódio. Deixa-me. Não quero esse teu corpo. Deixa-me, não quero que saibas quem eu sou. Não quero saber o que queres de mim. Sei que não te consigo dar o que queres. Na inconstante noite que vagarosamente nos vai rodeando, vê-me desvanecer aos poucos, um brilho ténue reflectido nos meus olhos. Uma lágrima cai não sabes de onde, as tuas mãos perdem-se também entretanto. Eu continuo aqui. E tu não me vês. Sorris para o alto, a tua garganta, o teu pescoço hirto, o teu peito peludo. Os teus dentes brancos, longe de serem perfeitos. Eu olho para ti e sei. Olhas para mim e não me vês.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Álvaro de Campos (E pensar q o sr. nunca existiu...)

"Na Noite Terrível

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim."