Acordo suavemente; oiço trovões que me despertam na totalidade, lá fora tudo se ilumina e eu levanto-me de repente, tremendo.
Aproximo-me lentamente da janela, olho com uma tristeza profunda os prédios à minha frente, a chuva que escorre pelo vidro, o despedaçar das poças que já se formaram no chão da rua. Esfrego os meus braços enregelados, que esperam pelo calor das tuas mãos, pelos teus lábios suaves. Observo o corpo que se encontra caído por entre os lençóis da minha cama – tão diferente do teu.
O telemóvel toca, as batidas no meu peito quase me impedem de respirar – És tu, sei que és tu, quem mais ligaria a estas horas? E depois não és, tento cada dia que te tornes de alguma maneira previsível, mas isso nunca acontece.
Como te atreveste a simplesmente aparecer e virar tudo do avesso? Como terei eu deixado que isso acontecesse? Não sabendo eu o que queres de mim, ou o que quero de ti. Calo com um beijo terno o murmurar sonolento de alguém que devia ser tu, volto-me de novo para a janela.
Adormeço contigo todas as noites, acordo sem ti. Penso que te afastas de mim naquele momento demasiado próximo da realidade, não podes ser real, não devias existir. Será que existes? Serás uma versão utópica que eu criei, após noites e noites de amarga solidão? Uma versão de alguém totalmente desinteressante, outro igual a tantos outros perdidos de amor e que eu não desejo nem numa bandeja de prata. Será que tudo isto será em vão mais tarde, será que um dia precisarei que me lembrem que senti algo forte por ti?
Deixa-me em paz, deixa-me viver a minha vida... Fazes-me magoar todos à minha volta. Porque penso em ti, mais do que devia, e ao pensar desejo-te, demasiado. Quero-te perto de mim e encontro-me a ver-te noutros corpos, noutras faces - vi-te ainda há pouco numa face adormecida junto da minha. Mas de repente a ilusão desfaz-se e já não te vejo, não entendo - onde será que vi pedaços de ti? E tu estás inteiro, em algum lugar, como pude eu contentar-me com tão pouco? Como poderei alguma vez?
Quero-te inteiro, quero beijar-te de novo esse pescoço, esses lábios, esse corpo que eu idolatro e comparo com o que não tenho – Embora também não te tenha a ti.
Sabes tão bem como eu que não te conheço, nunca falámos realmente, não faço a mínima ideia como funciona a tua cabeça – Por muito que tente, continuas um mistério constante para mim. Não penso que sintamos realmente falta um do outro, não psicologicamente, não da forma que sempre nos entregámos em segundos à volúpia que nos preenche a alma, às belezas dos corpos que possuímos.
Desejo-te e sei que me desejas – Disseste-me isso e quantas vezes não li nos teus olhos claros essa tua apreciação mental silenciosa. Mas isso não me chega, penso em ti e sinto a necessidade extrema de sentir de novo aquilo que me fizeste sentir, procuro sem cessar quem me faça sentir como tu. Por horas, minutos, segundos apenas.
Mas não és tu, não estás lá, falta sempre qualquer coisa. Porque não és tu?
Eu nunca conseguiria admitir, não em voz alta, que não aguento muito tempo agora que me dei conta de tudo o que é possível sentir. Como aguentar a revelação da minha voz fraca confessando algo tão temido, algo tão proibido pelas minhas próprias regras? Tornaste-me habilmente dependente de ti. Será que fizeste de propósito? Será que lá no fundo de ti percebeste que era a única maneira de agir comigo? Será que simplesmente não significo nada para ti? (Como terás fingido aqueles olhares cheios de tanto que não sei explicar?)
Insistes em marcar a tua presença, quando te esqueço por minutos algo acontece e lembro-me de novo, tenho vislumbres de ti e apercebo-me que não consigo estar com mais nenhuma pessoa, não sem te ver, sem te imaginar. As tuas características transformaram-se numa espécie de íman gigante, sensual e misterioso, seduzes-me à distância. Odeio-te e depois percebo que minto a mim própria, gostava que não tivesses existido mas logo de seguida apercebo-me que teria sentido a tua falta mesmo que não fizesse ideia de quem és, do que és, do que te tornaste.
Anseio pela próxima vez em que nos iremos encontrar, apenas para poder encontrar imperfeições, para me poder fartar desses olhos, dessas mãos, desses lábios. Para me deixares em paz, para te poder mandar embora, ignorar. Temo que me faças isso a mim e eu fique para sempre agarrada a esse fantasma que fui criando, que tu alimentas cada dia, cada semana que passa.
Mas continuas para mim uma barreira que não consigo ultrapassar, esse mesmo fantasma que me atormenta, essa presença constante com que sonho.
Não me conheces. Poderias achar que isto é uma espécie de paixão, amor. Não sinto isso por ti. Sinto um desejo tão grande que me consome, que me vicia. Quero mais do pouco que me deste. Quero dormir contigo, enrodilhada no calor desse corpo forte enquanto te beijo uma curva sinuosa no pescoço. Quero sentir as minhas pernas em torno da tua cintura e os meus braços estendendo-se ao longo das tuas costas, decorando cada pedaço delas. Quero explorar todo o teu corpo, centímetro por centímetro, uma e outra vez desvendar com os lábios a paixão que carregas no peito.
Quero sentir-te ao meu lado ao acordar, agarrar-me a ti para ter a certeza que não és uma ilusão, beijar-te uma e outra vez, esquecer-me que existe um mundo lá fora de que não fazes parte. Um mundo racional, onde tu estarias totalmente desenquadrado. Onde não terias lugar.
E sim, quero apaixonar-me por ti, quero saber como é, quero sofrer desmesuradamente por te amar e tu não me amares a mim. Quero dizer que já tive uma grande paixão na minha vida e sou como todos os outros, destroçada pelas traiçoeiras flechas de um tal Eros, mas que o tempo tudo cura e que um dia conseguirei esquecer-te. Mas não assim, na expectativa do que poderá acontecer – aliás na certeza absoluta do que irá inevitavelmente acontecer da próxima vez que nos encontrarmos – essas certezas que vais quebrando, aos poucos, até eu ficar absolutamente sem nada para me agarrar.
O saber que cada vez que nos encontrarmos vou sentir o teu corpo contra o meu, os teus lábios ao de leve no meu pescoço. E não saber quando será isso. E de repente perguntar-me exactamente se isso irá realmente acontecer um dia.
Sou orgulhosa (será que imaginas quão orgulhosa eu posso ser?), e aqui fico neste indecisão que me mortifica, que me tortura, lendo as mensagens que me mandas demasiadas vezes, respondendo mais que devia também eu, jogando nós os dois um jogo que não sabemos quando vai acabar. Que não queremos que acabe? Talvez. Porque nos contentamos ambos com breves indícios do que poderia estar a acontecer entre nós? Será que te contentas com isso? Será que é só isso que queres de mim?
Eu não consigo, será que sabes que quando preciso de ti e tu não estás vou buscar a outra pessoa aquilo que não tenho, que não me dás? O que me dá o direito de fazer isso? Nada. E continuo a dizer, iludida, que o culpado és tu.
Sinto uma mão que pega na minha, outra que me puxa para trás. Procuro os teus olhos claros, mas o que encontro são outros não menos belos – mas diferentes dos teus. Sinto-me aconchegada, abraço-me dentro de um corpo mais magro que o teu, acaricio cabelos mais curtos, dedos ligeiramente mais magros. Não encontro o anel que costumas usar no polegar. A voz que me sussurra palavras doces não é a tua, não as consigo escutar como devia.
Penso em ti e, em surdina, murmuro «Esquece-me». De seguida, sinto-me a desaparecer aos poucos, desnorteada com a simples ideia de não mais te tocar, de estares à minha frente mas tão longe, voando no teu grandioso pedestral, passando lentamente por mim sem me fitares o rosto. Quebro em pedaços o que disse e volto-me para o corpo junto do meu...
4-Julho-2005